Foi promulgada em 03 de maio deste ano a Lei nº 14.852/2024, que cria o marco legal de jogos eletrônicos.
A Lei contém disposições sobre diversos aspectos do ecossistema de jogos eletrônicos, desde a definição de jogos e de profissionais do segmento a questões tributárias, de fomento, proteção e responsabilidade, bem como regulamenta aspectos importantes relativos à propriedade intelectual dos jogos eletrônicos e dos direitos das crianças e adolescentes, que serão abordados a seguir.
Para a Lei, se considera como jogo eletrônico: (i) a obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador (conforme definido na Lei nº 9.609/1998 – Lei do Software) em que as imagens são alteradas em tempo real a partir de ações e interações do jogador com a interface, (ii) os dispositivos centrais e acessórios para executar os jogos (equipamentos físicos conhecidos como hardware) e (iii) o software, seja ele um aplicativo de celular, de página de internet, jogos de console de videogames, jogos em realidade virtual, dentre outros, executados via download ou streaming.
No que se refere ao item (i) acima, não obstante a Lei ressaltar o caráter de programa de computador da obra interativa (e que é protegida como direito autoral com características específicas no Brasil, nos termos da Lei do Software e da Lei 9.610/1998 – Lei do Direito Autoral), entende-se que o legislador quis destacar não só o “motor” da obra a ser explorada (no caso o software em si, objeto do item (iii)), mas também a obra intelectual resultante do conjunto do software com os demais elementos criativos relacionados, de forma compatível com a evolução do jogo eletrônico como um meio de veicular histórias.
De forma compatível com essas mudanças, a Lei prevê a possibilidade de fomento de jogos eletrônicos através da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual.
Destaca-se que tal definição não exclui a proteção dos elementos da obra audiovisual que podem ser considerados obras intelectuais de forma individual e protegidos também de forma autônoma, como trilhas sonoras, personagens e roteiro.
Com a definição do rol que integra a caracterização de jogos eletrônicos, podemos identificar, de plano, a incidência de regimes jurídicos distintos: a proteção como obra intelectual, nos termos da Lei de Direito Autoral e da Lei do Software (quando relativa ao programa de computador como figura central do jogo eletrônico) e como patente, nos termos da Lei nº 9.279/1996 – Lei da Propriedade Industrial (quando abrange os componentes físicos para a execução dos jogos). Importante observar que cada regime prevê procedimentos e proteções distintos. Por exemplo, tanto a obra audiovisual como o software não necessitam de registro para constituição do direito (sendo o registro de programa de computador perante o INPI meramente declaratório), enquanto os componentes físicos podem ser protegidos, se atendidos aos requisitos, via registro patentário, que passa por análise minuciosa do INPI.
Destaca-se que, apesar do critério facultativo do registro no que se refere a obras intelectuais, o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos alterou o Art. 2º da Lei da Propriedade Industrial, para incluir o inciso VI nos seguintes termos:
“Art. 2º A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante:
(…)
VI – concessão de registro para jogos eletrônicos”.
Tal inclusão vem sendo questionada por ser contrária ao regime atual de proteção de programas de computador, podendo ser interpretada como transformando em obrigatório o registro de todos os elementos considerados como jogos eletrônicos pelo Marco Legal.
Caberá, portanto, ao INPI promover esclarecimentos adicionais quanto aos procedimentos de registro e às proteções conferidas aos jogos eletrônicos.
Outro ponto de atenção que o fornecedor de jogos eletrônicos deve se atentar é justamente a proteção da criança e do adolescente, tanto ao longo do desenvolvimento do projeto do jogo, como no curso do consumo destes pela sociedade civil.
A legislação apresentou um capítulo inteiro (Capítulo III) dedicado à proteção das crianças e dos adolescentes diante da indústria de jogos eletrônicos, impondo, desde logo, que o parâmetro a ser seguido é o do superior interesse da criança e do adolescente (vide artigo 15).
Essa previsão não é novidade, visto que o Estatuto de Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), em obediência à Constituição Federal, determina que o princípio do superior interesse da criança e do adolescente deve ser o guia de qualquer ato que produza efeitos perante a criança e o adolescente. Na regulamentação dos jogos eletrônicos, não poderia ser diferente, tendo em vista que crianças e adolescentes compõem um grupo relevante de consumidores desses produtos e serviços.
O Marco Legal de Jogos Eletrônicos impôs uma série de diretrizes para a sua concretude da proteção integral da criança e do adolescente, como obrigações para os fornecedores, de (i) criar canais de escuta e diálogo com crianças e adolescentes, com o objetivo de aumentar a participação, mitigar riscos e efetivar os direitos (artigo 15, § 2º) e (ii) garantir um ambiente livre de discriminação, de exploração ou de violência, dentre outros pontos, em prol do desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes (artigo 15, § 3º).
Ainda, para os jogos que possibilitem trocas de conteúdos, mensagens de texto, áudio ou vídeos, os fornecedores devem disponibilizar, no mínimo: (a) sistema para recebimento e processamento das denúncias e reclamações de abusos, com o objetivo de garantir a segurança e pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes (artigo 16, I, II e III); (b) transparência, principalmente sobre o processamento das denúncias e reclamações, as sanções aplicadas e as ações tomadas para conscientização, educação e promoção de direitos fundamentais, dentre outros aspectos (artigo 16, IV); (c) vedação expressa nos termos de uso, práticas e trocas de conteúdo e interação que violem direitos de crianças e adolescentes (artigo 16, V); (d) atualização e manutenção da denominada ferramenta de moderação parental, que seja compatível com o estágio de desenvolvimento da criança e do adolescente, (artigo 16, VI); (e) transparência e atualização das ferramentas de interação com outros usuários, garantindo a desativação, se necessário (artigo 16, VII); e (f) que as informações sejam claras e em língua portuguesa (artigo 16, VIII).
A legislação também apresenta a preocupação quanto às ferramentas de compras e transações por crianças e impõe que devem ser restringidas aquelas feitas por crianças para que sejam consentidas pelos responsáveis (artigo 17).
A exploração desse mercado requer que o fornecedor tenha consciência de quem são seus principais consumidores e, em razão disso, propiciem as ferramentas necessárias para a proteção das vulnerabilidades daqueles que irão adquirir seus produtos. O fornecedor, portanto, deverá redesenhar seus produtos para que atendam a proteção exigida pela Lei e, ao mesmo tempo, resguardar a privacidade de seus players, que é um aspecto caro dentro do mundo dos games.
Assim, a promulgação da Lei é um importante passo para o reconhecimento das repercussões significativas que os jogos eletrônicos produzem na esfera econômica e social do país. De fato, as discussões pautadas não se esgotam na letra da Lei e ainda há que se regulamentar de modo mais específico cada tema que a Lei toca. Entretanto, o primeiro passo foi dado.
Este artigo foi elaborado pelos advogados Isabela Vilhalba, Karen Yui Sagawa e Ana Carolina Esposito.